O painel de encerramento do 4º Seminário Jurídico de Seguros – realizado pela Revista Justiça & Cidadania e pela Confederação Nacional das Seguradoras –CNseg, tratou da oferta de proteção veicular por “associações” que atuam sem a supervisão da Superintendência de Seguros Privados (Susep). Presidido pelo ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Luiz Alberto Gurgel de Faria, o painel contou com a participação do ministro do STJ Geraldo Og Fernandes, do vice-presidente da CNseg, Roberto Santos, e do procurador-chefe da Susep, Jezihel Pena Lima.
O ministro Og Fernandes comentou o RE 1.616.359/RJ, que foi apreciado sob sua relatoria pela 2ª Turma do STJ em 2018, e que tinha origem na ação civil pública ajuizada pela Susep contra uma associação que oferecia proteção veicular, com sede em Belo Horizonte. Na sentença da Vara Federal no Rio de Janeiro, de dezembro de 2013, foi deferida a liminar e julgados parcialmente procedentes os pedidos, incluindo a declaração de ilicitude da atividade e a determinação da suspensão imediata das atividades securitárias da associação.
A sentença fundamentava-se no fato de que a associação não contrata seus funcionários, utiliza pessoal em troca de ganhos imediatos ou comissões, o que fragiliza o consumidor, na medida em que não dispõe da intermediação feita por um corretor profissional. Além disso, o não cumprimento das exigências legais por parte da associação, como o recolhimento de tributos e a formação de reservas técnicas, eleva os riscos para os associados e representa concorrência desleal às empresas que atuam de forma regular. Na sequência, porém, Turma Especializada do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, em julho de 2014, acolheu recurso da associação e julgou improcedentes os pedidos da ação.
Respaldo indevido – Reformada a sentença, foi declarada a possibilidade da instituição de uma associação sem fins lucrativos para promover proteção automotiva a seus associados, com respaldo no Enunciado nº 185 da III Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Federal, que trata da interpretação do art. 757 do Código Civil e foi assim redigido: “A disciplina dos seguros do Código Civil e as normas de previdência privada que impõe a contratação exclusivamente por meio de entidades legalmente autorizadas não impedem a formação de grupos restritos de ajuda mútua, caracterizados pela autogestão”. Com a rejeição dos embargos de declaração, a Susep formalizou recurso especial ao STJ em 2016.
O Ministério Público Federal (MPF) deu parecer pelo provimento dos recursos especiais, afirmando que a interpretação conferida pelo Enunciado nº 185 não se aplica ao caso porque a associação não consubstancia grupo restrito, além da sentença violar “flagrantemente” os artigos 24, 78 e 113 do Decreto Lei nº 73/1966, uma vez que foi retirada da Susep a possibilidade de interferir na fiscalização e adequação da associação aos ditames legais. No julgamento do recurso especial, a 2ª Turma decidiu de forma unânime pelo restabelecimento da sentença de 1º grau, a partir da compreensão de que a descrição das atividades da associação tem todas as características de um típico contrato de seguros de danos. Os embargos de declaração foram rejeitados pelo STJ e um recurso extraordinário interposto pela associação foi inadmitido pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Porém, ainda está pendente de análise o agravo formalizado com base no art. 1.042 do Código de Defesa do Consumidor.
Novos casos – Segundo sites especializados, mencionados pelo ministro Og Fernandes, a Susep já ajuizou ao menos 360 ações civis públicas buscando o encerramento ou a suspensão das atividades destas associações que operam à margem da fiscalização da autarquia. Para o magistrado, “a existência de expressiva quantidade de demandas ainda em trâmite aliada ao avanço de projetos de lei para alterar normas de regulamentação da atividade certamente culminará na chegada de novos recursos ao STJ para o enfrentamento do tema e, possivelmente, o cenário legislativo e normativo será um pouco diferente daquele no qual analisei o mencionado recurso. (…) O caso que esteve sob a minha relatoria foi o primeiro a ser apreciado no âmbito do STJ. Seguramente, não será o último”, comentou o magistrado.
Diante de um quadro mostrado pelo ministro Og Fernandes, no encerramento de sua apresentação, com decisões tanto favoráveis quanto contrárias à argumentação das ações ajuizadas pela Susep em diferentes TRFs, incluindo decisões divergentes dentro das mesmas cortes, o Ministro Luiz Alberto Gurgel de Faria ressaltou a importância da missão de uniformização da interpretação da legislação federal pelo Superior Tribunal de Justiça.
“Associado” não é consumidor – Com atuação no ramo de seguros há mais de 30 anos, Roberto Santos apresentou as diferenças conceituais entre as seguradoras e as ditas “associações de proteção veicular”. Caracterizou as primeiras como empresas legalmente autorizadas e reguladas pela Susep que, recebendo o prêmio, assumem o risco e garantem a indenização em caso de ocorrência de sinistro amparado pelo seguros. Já as “associações”, segundo o executivo, não se enquadram nos critérios das associações tradicionais, pelo fato de seus associados não possuírem qualquer outro animus associativo em comum a não ser a suposta “proteção veicular”.
Segundo o executivo de seguros, estas associações estão em processo de expansão de seus negócios para outras áreas, como o ramo de residências e também para o ramo vida, com desenhos semelhantes. O preço de uma proteção veicular é em média 30% mais barato que um seguro tradicional, o que só é possível diante do não pagamento de tributos e da inexistência das garantias de solvência. Roberto Santos informou que somente em 2020, as seguradoras que operam no ramo de automóveis, cujas apólices atualmente dão cobertura a mais de 19 milhões de veículos no país, constituíram R$ 8,3 bilhões para fazer frente às suas obrigações. Já no mercado das “associações”, com cobertura estimada sobre seis milhões de veículos, não há qualquer provisão.
Santos acrescentou que enquanto as seguradoras regulares são fiscalizadas pela Susep e estão submetidas ao Código de Defesa do Consumidor, as associações, além de não fiscalizadas, alegam não se submeter ao CDC, porque “associado” não seria consumidor. Segundo ele, há atualmente 13 projetos de lei, nos legislativos federal e estaduais, voltados à regulamentação das associações de proteção veicular e as seguradoras regulares consideram necessária a aprovação de uma lei que, de forma definitiva, termine com a assimetria entre as duas operações.
Fiscalização de Grupos Restritos – Em sua apresentação, Jezihel Pena Lima pontuou primeiramente que o Decreto Lei nº 73/1966 exige para atuação no mercado segurador a autorização do órgão estatal competente, no caso a Susep. As entidades assim interessadas precisam ter roupagem jurídica de sociedade anônima ou cooperativa – no caso, restrita apenas aos ramos de seguros agrícolas, de saúde e de acidentes de trabalho. Outro ponto trazido pelo Procurador-Geral é que entidades que não se qualificam como sociedades anônimas, intituladas associações de proteção veicular, já detêm parte considerável desse mercado, funcionando à margem da regulação estatal, vendendo seus produtos a uma massa de população bastante expressiva, que não conta com a garantia do Estado.
Segundo Lima, a relatoria do ministro Og Fernandes no julgamento do RE 1.616.359/RJ é um precedente divisor de águas para quem milita no assunto, por ter trazido maior segurança ao debate e a chancela de que o combate a esse mercado estava na linha correta. O procurador-Geral da Susep ressaltou, contudo, que a questão dos grupos restritos ainda representa risco considerável ao mercado segurador e à população que consome esses produtos, pois teria sido de certo modo ressalvada pela tese fixada no Enunciado nº 185. Segundo ele, toda vez que há a captação de recursos junto ao publico e a sua acumulação sob a gestão de terceiros existe a necessidade de intervenção do Estado, a exemplo do que ocorre no caso da saúde suplementar, sob a fiscalização da ANS, e dos consórcios, supervisionados pelo Banco Central.
Mais sobre a 4ª edição – Apresentado pelo Editor-Executivo da Revista Justiça & Cidadania, Tiago Salles, o 4º Seminário reuniu novamente ministros das cortes superiores, membros do Ministério Público e CEOs das maiores seguradoras do país, desta vez em formato totalmente virtual. Parte do projeto Conversa com Judiciário, realizado pela Revista, o Seminário teve apoio institucional do STJ e do Conselho Nacional de Justiça.
A abertura do 4º Seminário foi prestigiada pelo presidente do STJ, ministro Humberto Martins, e pelo presidente da CNseg, Marcio Coriolano. Nos demais painéis, foram discutidos: o dever de informar dos estipulantes de seguros de vida; as formas de aperfeiçoar o sistema NatJus e os critérios de correção das dívidas judiciais do setor privado. Assista a íntegra no canal da Revista Justiça & Cidadania no Youtube e confira a cobertura completa na edição de dezembro.